Joseph Campbell, em sua obra seminal, afirma que enquanto os sonhos são nossa mitologia individual, os mitos são nossos sonhos coletivos. Seja em um mundo neolítico, seja em um mundo onde a Amazon faz entregas com drones a partir de pedidos do Chat GPT atrelado a sua geladeira ligada à internet das coisas, a lição de Campbell segue verdadeira.
Ao contrário da nossa era pós-industrial onde as coisas angariam mais valor à medida em que podem ser “stripteasecamente” explicadas, fatiadas (e preferencialmente comercializadas), o poder de um mito reside justamente na sua desnecessidade de maiores explicações.
Um mito faz sentido enquanto pairar como fruto misterioso em uma árvore de copa alta e cenário com penumbra, onde os contornos são mais perceptíveis que a substância, porque no fundo, a essência humana também é assim: mais opaca que cristalina, mas onírica que desperta, mais fluída que concreta, mais propícia a devaneios que mensurável por estatística ou descrita por discursos cartesianos.
Um dos problema que a nossa forma de viver pós-industrial gera é decorrente do nosso PRESENTISMO, um conceito oriundo da sociologia e que foi muito trabalhado pelo historiador François Hartog, e tem despertado a atenção dos cientistas sociais.
Se a civilização é a soma de quem viveu, de quem vive e de quem viverá, como manter a liga entre passado, presente e futuro se vivemos no séc. XXI o tempo inteiro em uma roda infernal de um presente acelerado que apaga sem deixar rastros o passado e assassina o futuro o transformando em eterno presente assim que ele surge no horizonte?
As ciências sociais ainda não responderam tal desafio, mas já se sabe que parte do poder dos mitos se perdeu justamente por causa da desconexão do presente com o passado e isso representa um empobrecimento existencial para o futuro. O romancista britânico Neil Gaiman aborda com extremado talento essa dinâmica no livro (transformado em série via Amazon Prime) American Gods: a falta de crença nos mitos antigos torna as divindades mais vulneráveis, porém, não são apenas os deuses que perdem.
A humanidade, por esse prisma, nunca deixa de se devotar a algo, ela apenas muda o objeto de veneração. Saem os antigos deuses, mais afeiçoados com o que o ser humano é e evoluiu para ser como besta fera que pode ser gentil, e entram os deuses contemporâneos como capitalismo, mídia e redes sociais que exigem muito mais atenção que uma prece no altar de Odin, mas não entregam nada humano em troca.
Se um “deus” pede que entreguemos parte de nossa humanidade mas nos entrega algo totalmente desumano em troca, o preço da devoção é sempre alto demais.
Essa desconexão, essa falta de interesse pelo passado (e pelo futuro) nos turva a visão como espécie, sociedades e famílias, porque deixamos de saber quem somos porque não sabemos quem fomos. A páscoa, celebrada hoje, é um perfeito exemplo disso. Nascida como “pessach” (passagem) aos judeus, vem de muito mais longe!
Nasceu com Ostara, entidade mitológica provavelmente celta, em que uma mulher é sempre retratada com coelhos e ovos, ambos símbolos da fertilidade. Mas de onde provém Ostara, o coelho e os ovos? Como em toda saga mítica (frisando que mitos não são “mentiras” mas sim verdades para além de explicações demasiadas, e mentirosos são os políticos que se autointitulam de 'mitos'“), existem é claro pequenas variações, tal qual uma música / canção lendária. O que importa no mito é a seiva, porque ele é a essência de uma verdade por si só, já essencial.
A mulher representando Ostara é não menos que a primavera, que se no hemisfério sul já é agradável, no hemisfério norte (e quem lá morou sabe com a própria pele isso) é simplesmente um RENASCIMENTO. Acorda-se do sono mais disposto, a vontade de respirar ar livre brota, o desejo por frutas, alimentos mais frescos, deitar na grama, andar de bicicleta, deixar o sol tocar nossas faces…
Mas e os coelhos e os ovos?
O coelho simboliza a fertilidade e um dos animais prediletos de Ostara, mas falta explicar os ovos. Bem, mamíferos não colocam ovos, certo? O mito não poderia ser tão inocente… e não é! Conta uma das versões do mito que uma ave, tão feliz com a chegada em breve de Ostara (primavera) quis agradar a deusa e assim se disfarçou de coelho, sabendo que era seu animal favorito. Ocorre que infelizmente ainda era o final de inverno e os poderes da ressurreição de Ostara não eram plenos. Quando o coelho revelou que na verdade era uma ave, não conseguiu voltar à forma original e se desesperou. Chorou nas mãos de Ostara que tentou com seus poderes o tornar novamente uma ave, mas não conseguiu. A deusa prometeu: “ave, assim que a primavera chegar, meus poderes estarão no auge e hei de conseguir lhe restituir a forma. Deixarás de ser coelho.”
A primavera chegou e Ostara cumpriu a promessa: as asas nasceram no coelho e rapidamente seu focinho se metamorfoseou em um bico. Era novamente um ser alado. Radiante com o feito da deusa primavera, a ave pôs um ovo e presenteou Ostara com ele. A partir daí, Ostara seria representada com paisagens floridas, frutos, coelhos e…ovos.
A páscoa cristã (como o natal) não é tão diferente: resgatou mitos antigos e os moldou conforme sua iconografia. O deus Cristo morre nas mãos dos homens pela crucificação e mesmo renegado, ressuscita do “inverno" moral da sociedade, nascendo e trazendo a “primavera” da sua bondade, e não como Deus carne, mas como Deus espírito.
Seja qual for a verdade em que cremos, a verdade mítica é forte demais (e necessária) à manutenção de nossa humanidade para a renunciarmos em troca das “divindades” pós-modernas, que como Gaiman tenta demonstrar, não querem devoção em troca de uma direção ou lições, mas sim, de total escravização.